domingo, 25 de janeiro de 2009

"Você não está lendo um texto. Você está dormindo numa rede, atravessando um farol, comprando um porta-clipes, fazendo arroz integral, prendendo os cabelos, assistindo doctor House, vendo sua cachorra espreguiçar. Sei lá, qualquer coisa. Mas você não está lendo esse texto. Eu também não estou escrevendo pela trigésima vez sobre gostar de alguém. E tentando entender todos os 567 contras e 876 a favor. E tentando metaforizar um cheiro, um olhar, uma frase. E tentando descrever minha dor só para dar a ela algum patamar mais interessante do que a simplicidade de uma simples dor. E tentando supervalorizar minha alegria, só para dar a ela um gosto de vitória como se jamais fosse cotidiano ser feliz. Eu não estou de frente para uma folha em branco. Tentando tornar meus personagens mais interessante e meus sentimentos mais nobres. Eu estou de frente para eles, vendo que meu personagem pode ser sem graça e meu sentimento pode estar morrendo. Este é um não texto porque cansei da minha covardia em me contar um mundo que eu invento para viver melhor. Cansei de me contar um personagem só para que suspirar não seja um simples movimento involuntário. Cansei de me contar uma história linda, só para que os dias não corram sem magia e sem a certeza de um grande final de filme. Imagina só que vida chata se eu, ao invés de escrever um texto de amor, cheio de esperança, profundidade, dor, maluquice, tesão, estivesse escrevendo um texto assim: e ninguém é interessante e eu, pra ser sincera, não gosto de ninguém. Triste, muito triste. Chato. E pior do que tudo isso: anti-literário. Como é que um escritor vai se sustentar com um coração vazio? Mas chega. Hoje decidi que estou prestes a assumir meu coração vazio. Não decidi isso movida por uma grande coragem ou por um momento de iluminação. Nada grandioso aconteceu. Apenas sinto que dei um pequeno, quase imperceptível, passo para uma vida mais madura. Eu simplesmente não suporto mais pintar o céu de cor-de-rosa para achar que vale a pena sair da cama. Não posso mais emprestar mistério ao vazio, vida ao oco, esperança ao defunto, saliva ao seco. Não posso mais emprestar meus desejos para que pessoas se tornem desejáveis. E, finalmente, não posso mais inventar amor só para poder falar dele. (...)"




(Tati Bernardi- O não texto)

Nenhum comentário:

Postar um comentário